sábado, 15 de março de 2008

Diálogo do des-conhecido

- Olá, tudo bem?

- Tudo! Quem é você?

- Eu sou a mulher que vive em busca do sentido da vida. E você? O que fazes numa noite fria como essa, perambulando ao relento sem lenço e sem documento?

- Nossa! Mas uma mulher em busca do sentido da vida numa noite fria como essa? Não se esqueça de colocar um casaco. Você me parece uma pessoa um tanto certa do que quer. Tem certeza de que buscas mesmo o sentido da vida?

- Sim, senão não estaria aqui, só, caminhando por essas vielas escuras, procurando pelo desconhecido. Mas você não me respondeu... O que fazes aqui?

- Mas veja bem, você está procurando o desconhecido? O desconhecido não existe. Só procuramos o que conhecemos. Como pode querer encontrar o desconhecido?

- O desconhecido é aquilo que já está na nossa mente sem uma forma definida ainda... não existe de fato, mas ao tomar formas, torna-se conhecido, entende?

- Entendo...mas então o que queres de fato do desconhecido?

- Não sei, quero encontrá-lo e nele captar algo para mim.

- Hmmmm... muito insensato de sua parte querer captar algo do desconhecido sem mesmo conhecê-lo. Como acha que pode conseguir?

- Ah... não seja frio e calculista!!! Abra a sua mente e verás o desconhecido bem à sua frente. No fundo, todos sabemos o que queremos, mas não muito claramente. Mas não me contastes ainda quem é você e o que procura nessa noite fria e quase chuvosa.

- Certo! Não sou frio e calculista!!! Eu busco a verdade acima de tudo. E não posso encontrar a verdade no desconhecido.

- Mas é lógico que podes!!! Use a sua mente... é fácil demais. Quer ver?

- Quero!!! Você vai me ajudar a encontrar alguma verdade no desconhecido?

- Feche os olhos!

- Fechei! Agora imagine que aqui do seu lado tem um saco com muitas coisas dentro, mas você não sabe o que tem nele, apenas imagina. Você o vê, e pela quantidade e forma das coisas, sabe que dentro dele existem coisas que você pode pegar, mas ao mesmo tempo essas coisas não são suas e você não as pode pegar agora, apenas quando lhe derem, ok?

- Ok, quando então poderei pegá-las?

- Calma, apressado!

- Então, todas essas coisas são desconhecidas para você e não há nenhuma verdade nelas por enquanto. Imagine que essas coisas não são coisas palpáveis e sim coisas que você gostaria de viver daqui a algumas horas ou dias, semanas, meses ou anos, certo?

- Certo! Mas não posso fazer isso... Isso é futuro! Gosto desse instante agora que vivo com você! Imaginar o que vou fazer daqui a anos é muito longe e escapa das minhas mãos!

- Sim, mas pense, por mais que não queira... Mas espera aí! Vamos fazer diferente. Está vendo o saco com as coisas? Imagine que são coisas materiais com diferentes formas, mas você só vê as formas, ok? O que mais lhe agrada nas formas?

- Ah, agora sim. Eu vejo coisas quadradas, redondas, compridas, vejo retângulos, losangos, vejo estrelas, vejo bolas, vejo abajures, vejo mesas, cadeiras, vejo até uma cama pra dormir com você!

- Está vendo como quer algo?

- Estou brincando com você querida! Jamais dormiria com uma desconhecida, maluca que perambula em noites frias como essa buscando o sentido da vida e me fazendo de tolo!!!

- Quer fazer o favor de fechar os olhos e prestar atenção no que estamos fazendo?

- Ok, ok, ok. Você é quem manda, Dona Maluca!!!

- Associe essas formas que você vê com coisas que quer para si agora, certo?

- Xiiiii.... vai ser difícil isso. Você vai me achar um pervertido, um louco desvairado.

- Você disse coisas quadradas. O que está dentro do quadrado?

- Ah... Aí eu vejo uma cama pra dormir com você.

- E no redondo?

- A lua linda e maravilhosa que ilumina a nossa noite.

- E nas formas compridas?

- Ahahahahha! Bom, deixa pra lá!

- E os losangos?

- Esses são os balões que vemos no céu... As estrelas que vemos pela janela, como bolas coloridas, abajures iluminando o nosso quarto, mesas, cadeiras, paredes, lençóis!!!!

- Me solta! Seu louco, eu vou gritar... Socorro!!! Alguém me ouça!!! Tem um louco me pegando aqui!!!!

- Ah, fofa, calma... Ninguém vai te ouvir nessa noite fria quase congelando. Todos estão em suas casas, quentinhos, jantando, dormindo e fazendo carinho... Nós loucos estamos aqui racionalizando pedaços de vida, futuro que não existe, o desconhecido e a verdade que é mais falsa que qualquer outra coisa.

- Não me lembro como nos conhecemos, por que viestes falar comigo? Queria ficar só.

- Não gostou? Posso ir embora... Ali logo em frente tem alguém a esperar pela gente. Mas calma aí... quem veio falar comigo foi você, não se lembra??? Eu estava muito bem, no meu canto, pensando em como iria sobreviver só nesse frio e ia tomar uma bebida, quando você apareceu!!! Tchau então!

- Não, não vá!!! Fique! Não vou conseguir sobreviver nessa noite fria também.

- Por que estamos na rua? Por que não entramos naquele bar e tomamos algo quente?

- Não gosto de bares como esses dessa rua.

- Tens onde dormir?

- Sim, em casa.

- Por que não vais para casa então e fica refletindo sobre o sentido da vida lá... É bem melhor que aqui nesse frio.

- E você por que veio para a rua? Não tens casa?

- Tenho, mas vi você lá de cima e resolvi descer.

- Sério? Onde moras?

- Em cima de você.

- Mas como? Se nunca te vi?

- Você está sempre ocupada com suas coisas e na hora que você normalmente sai eu chego e por isso nunca nos encontramos. Está vendo aquela luz acesa ali em cima da sua jardineira? É o meu quarto aceso.

- Nossa, mas que coisa louca!!! Há quanto tempo mora ali?

- Faz três meses que aqui estou... E sei que você chegou a um mês de viagem, não é?

- Seu fofoqueiro!!! Como sabes disso?

- Eu vivo a vida dos outros... Gosto de sentir suas vidas como se fosse a minha. Tenho muitas vidas que queria viver guardadas dentro de mim. Mas não queria viver a sua vida... Você é muito pé nas nuvens.

- Mais pé nas nuvens que você não existe. Como pode viver pedaços de vida na sua mente?

- Vivendo oras. Por exemplo, está vendo aquele mendigo ali? Tenho um pedaço da vida dele e não quero nada mais pra mim... Sou um errante. Sou como as mulheres da vida e faço sexo só por prazer, sem amor e paixão. Sou o dono do bar e bebo tudo o que quero. Sou o estudante, pragmático, devoro livros. Sou o executivo, tenho muito dinheiro, viajo pelo mundo! Sou o porteiro que abre as portas para a vida dos outros. Sou um cantor e canto meu mundo no banheiro! Sou o ator e represento papéis como esse. E sou um louco!

- Ahahahaha, como você é tão louco como eu... Já buscou então o sentido da vida com todos esses personagens que você cria no seu mundo?

- Mas pra quê o sentido da vida ?? O que é vida, me diz???

- A vida? Bem, a vida é essa coisa que nos move, que cria nossos pensamentos, que invade o coração, que nos alegra, que nos entristece, que nos exalta... A vida é o pulsar do instante. A vida para mim é também o amor, amizade...

- Amor? Mas que coisa romântica! Esqueça do amor e não terás mais vida? Você não sabe o que é a vida e nem muito menos o amor.

- Então me digas. O que sabes da vida e do amor?

- Aahhahahhah... Você me fazendo esta pergunta?

- Sim, responda, rápido!!!!

- A vida é o olhar. Se eu consigo olhar, eu vivo.

- E se fechas os olhos? Não vives?

- Quando fecho os olhos eu amo.

- Não amas de olhos abertos? E não vives de olhos fechados?

- Não.

- Ok, deixe-me embora... já perdi tempo demais com esse bla, bla, bla. Está frio e preciso dormir... Tchau!

- Juras que vai me deixar aqui de olhos abertos olhando pra você indo embora sem poder fechá-los e amar-te? Venha, segure a minha mão. Esqueça o sentido da vida, esqueça o desconhecido e a verdade. Não existem verdades, nem mesmo desconhecidos, somente a vida. Então viva essa vida.

- Opa! Calminha. Esse instante que vivo com você foi um dia desconhecido para mim e agora se tornou uma verdade e estamos vivendo, porque a vida pra mim é o pulsar do instante.

- Ok, vejo que nos completamos então.

- Não acredito que opostos se atraem. Você é um chato! Odeio esse seu jeito meio estranho de ser, com essa sua voz trêmula, aguda, irritante! Não posso viver essa vida com um ser que me bisbilhota da janela.

- Eu, estranho? Mais estranha que você, só você mesmo. Sua complicada! Te bisbilhoto porque gosto do seu jeito atrapalhado de colocar o sutiã. De tomar banho com sabão de coco e de não pentear os cabelos. Gosto de te ver dormindo de pijamas de seda com lençóis de cetim. Vivo essa vida sua como se também fosse a minha. Por isso te quero do meu lado... Venha, me dê as mãos...

- O quê???? Como posso dar as mãos para um bisbilhoteiro de primeira classe! Vou te entregar à polícia...

- Pra quê?! Agora quem não quer mais perder tempo sou eu... Tenho sono e não posso mais ficar aqui ouvindo esse discurso de uma louca que vai passar o resto da vida buscando o sentido da vida... Tchau!!!

- Tchau então... vá para o seu quarto escuro e nunca mais terás a minha janela como pano de fundo para essa sua vida medíocre através dos outros...

- Deixa de ser maluca. Estou te chamando para a minha vida. Por que não vens?

- Porque, porque, porque... O sentido da vida que busco acaba aqui. Não quero mais buscá-lo... Quero vivê-lo.

- Não sei então porque ainda buscas o sentido da vida. Você já descobriu... Agora agarre-se nela e viva, de preferência comigo..

- Mas me diga, quem é você? Ainda não me respondeu...

- Eu???? Você não sabe? Já te disse! Eu sou você quando buscares o sentido da vida... Eu sou um pedaço de ti arrancado pela sua ignorância em não me aceitar.

- Você acha mesmo que vou te aceitar?? Não sejas tolo!!!

- Mas por quê?? Me digas!!! Por quê?

- Porque o sentido da minha vida não está em ti, não é você. Um louco desvairado que anda por vielas escuras e frias noites... E além do mais, o sentido da vida não pode estar em uma pessoa. Ele é muito mais que isso. Está envolto em algo muito superior a isso.

- Olhe quem fala. Quem saiu por aí por ruas frias e escuras divagando sobre o sentido da vida? E, nossa, mas pra quê filosofar tanto sobre isso. Coisas superiores... É tudo tão simples assim...Você já descobriu o sentido da vida, já sabe o que é a vida, mas não se encontrou no desconhecido... O desconhecido!!!!! Veja... Quem é o desconhecido???? Esse ser que te aparece repentinamente sem pedir licença, que lhe fez refletir sobre o sentido da vida, que acabou de te mostrar que a vida é tudo aquilo que você disse há menos de um minuto... Eu te disse, eu te mostrei o sentido da vida. As palavras se saíram como os pássaros sobrevoam o mar, cantando alegremente, como o sol que grita de calor, como a chuva que espirra com sua força, como o barulho das ondas e das árvores balançando... Você se encontrou na vida e o desconhecido sou eu...

- Mas e a verdade que tu buscas? Encontrastes?

- A verdade, minha querida, é isso que agora vivo com você, somente isso... O que há mais de verdadeiro nisso? Você é a minha verdade neste momento presente... Venha, vamos cantarolar por aí, esquentar nossos desconhecidos e ver que o sentido da vida é tudo o que nos completa...Venha... Lá, lá, lá... Vamos sonhar juntos... Lá, lá, lá...

quarta-feira, 5 de março de 2008

No hay camino, se hace camino al andar.

POEMAS PORTUGUESES ( 4 )

Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento

Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão

Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação

Fonte, flor em fogo,
quem é que nos espera
por detrás da noite ?

Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino

(Ferreira Gullar)

Um professor da faculdade ensinava que era inútil a arte de projetar caminhos em grandes parques, praças, jardins, etc, porque por mais que se criassem caminhos pré-determinados que ligassem dois espaços distintos, esses caminhos eram sempre burlados pelas pessoas. De um certo modo, e na maioria dos casos, é verdade. Em Brasília, por exemplo, os caminhos se formaram naqueles grandes gramados das ruas, espontaneamente. Por mais que calçadas e caminhos estipulados tivessem sido pensados "corretamente", os pedestres (que hoje, apesar do projeto da cidade voltado para o automóvel, já são muitos percorrendo grandes distâncias), criam esses caminhos diariamente. Eu mesma os utilizei quando estive lá e me foram mais úteis que as próprias calçadas, "bem-planejadas". As pessoas sabem o que se torna melhor para elas mesmas quando o dia-a-dia lhes permite tal indagação.

Pois bem... indagações à frente, o poema de Gullar se inspirado em Antonio Machado ou independentes entre si, é uma arquitetura da vida e na vida. Não faremos nossos caminhos determinados e pautados no que todos determinam que seja o mais correto. Sabemos, somente nós, individualmente, onde o próprio caminho quer levar. Mil voltas são dadas na promenade arquitetural, levando todos ao mesmo lugar - pleonasmo desnecessário. Mas caminhos projetamos ao futuro de algum modo. Sabendo ou não o que se quer ou onde se quer chegar ou como chegar, a algum lugar se chega no caminho, mas antes ver onde se quer chegar. Muitas são as promenades arquiteturais. Perde-se ou ganha-se tempo, mas lá se vai estar um dia. É preciso o caos interior para descobrir que era lá onde se queria estar, sempre foi.

É preciso madurar o caminho na grama até que ele esteja feito. Muitos por ali terão de passar.


Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar
(Antonio Machado)